“Aumento da sinistralidade rodoviária deve-se ao uso do telemóvel”

Sinistralidade rodoviária - Entrevista a José Miguel Trigoso, PRP

Perante os números que revelam a subida da mortalidade e dos feridos graves nos acidentes rodoviários, o presidente da associação Prevenção Rodoviária Portuguesa aponta como causa provável a distração provocada pelos ecrãs. José Miguel Trigoso estranha os dados da sinistralidade rodoviária de 2017 e 2018 e alerta que está a acontecer uma sub-anotação das mortes a 30 dias.

 

Nos últimos anos, tem-se verificado um aumento da sinistralidade rodoviária, com mais acidentes, mais mortos e mais feridos graves. Como se explica este cenário?

O número de mortos vem aumentando desde 2016. Esse foi o ano em que morreu menos gente nas estradas, a partir daí foi sempre aumentando. Mas o número de feridos e de acidentes com danos corporais já vinha a aumentar muito antes, pelo menos a partir de 2012. Nota-se uma tendência para a estabilização ou para o aumento, a redução da sinistralidade rodoviária acabou. E isto tem-se vindo a generalizar na Europa, mais ou menos desde essa altura, entre 2012 e 2104. Da nossa interpretação, isto deve-se a uma cada vez maior utilização do telemóvel.

 

Como é que o uso do telemóvel explica esta sinistralidade rodoviária?

É um fator de distração muito complicado e que traz vários tipos de perturbação. O primeiro dos quais tem a ver com a conversa e a perturbação que esta introduz na atenção e na concentração na função de conduzir. Uma pessoa passa a sua concentração na condução para o tema da conversa.

 

Isto mesmo usando os sistemas de mãos livres?

Sim. A única diferença é ter ou não uma mão ocupada. Em termos de concentração, o efeito é igual. Isto vem sendo muito agravado pela distração provocada pelo desvio do olhar para as mensagens, as redes sociais, os emails, etc., coisas que cada vez se usam mais, até em detrimento da conversa. Não existem dados estatísticos claros da sinistralidade rodoviária ligada a esse problema, mas todos os estudos indicam que a interferência do telemóvel no aumento do risco é enorme.

 

O facto de os carros estarem atualmente equipados com ecrãs cada vez maiores também provoca este efeito?

A mesma coisa. Sobretudo no caso dos ecrãs que têm um ‘touch panel’. Os ecrãs táteis exigem maior atenção e isso pode ser um acréscimo do risco.

 

Há outra questão que se levanta quando se estudam os dados da sinistralidade. Os relatórios RASI usam dados da mortalidade até à vítima chegar ao hospital, o Eurostat contabiliza mortos até 30 dias, e os dados que passam dos relatórios de um ano para o outro são diferentes. Como é possível termos uma noção exata da realidade de que estamos a falar?

Isso é um problema. Neste momento, tenho até uma preocupação acrescida. A partir de 2010, com a colaboração da área da Saúde, conseguimos ter, com o rigor possível, o número de vítimas mortais a 30 dias. Falo destes dados porque, a nível internacional, são os únicos que têm critérios bem definidos e seguidos por todos. Entre 2010 e 2016, o número de mortos registados até à entrada no hospital sofria, normalmente, um agravamento médio de cerca de 27% somando-se as mortes a 30 dias. Num ano, esta taxa foi de 23%, noutro chegou aos 32%, mas a média dos últimos anos era de 27%. De repente, em 2017, esta taxa de agravamento baixou para 18%.

 

Como se explica essa queda tão abrupta das mortes a 30 dias?

Acho que, estatisticamente, não é possível uma alteração tão grande. Pusemos a questão e deram-nos explicações sem grande sentido. O problema é que, em relação a 2018, ainda só estão publicados os dados da ANSR (Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária) até maio. Se se comparar o número de mortos de maio até à entrada no hospital com os números a 30 dias, a diferença é só de 12%. Perguntei se houve alguma alteração substancial nos critérios de notação dos casos. A PSP e a GNR dizem-me que não, mas alguém terá alterado os procedimentos. Não é possível uma alteração desta grandeza. Quanto a mim, está a haver uma sub-anotação nas mortes a 30 dias. E têm de me convencer do contrário. Há meses que pararam de publicar os relatórios e aquilo não passa de maio de 2018. Já passou um ano sem que haja dados finais. Alguma coisa se passa, que não sei explicar.

 

Sinistralidade rodoviária, Agravamento das mortes nas estradas a 30 dias

 

Fala de um risco generalizado na Europa. Existem outros fatores que expliquem o aumento da sinistralidade rodoviária em Portugal?

Em Portugal, para além do problema dos ecrãs, há outras coisas que explicam o fenómeno. Comparando as características da nossa sinistralidade com os países da União Europeia, nós temos, logo à partida, um problema muitíssimo complicado, que é o da sinistralidade rodoviária dentro das localidades. Nós somos dos únicos países que têm mais vítimas mortais em acidentes dentro das localidades do que fora.

 

Conduzimos demasiado depressa e com pouca atenção dentro das localidades?

É isso, juntamente com a menor qualidade da organização do trânsito e das infraestruturas dentro das localidades. Existe muito mais homogeneização na construção das vias interurbanas. Já dentro das localidades, há uma diversidade brutal, critérios muito diferentes de autarquia para autarquia e não existem normas de projetos rodoviários, que estão previstas há muito tempo. Há, também, uma desvalorização dos excessos de velocidade no interior das localidades, que são particularmente perigosos. Pequenos excessos dentro das localidades podem ser muito mais perigosos do que excessos substancialmente maiores numa autoestrada.  

 

A questão da velocidade não está a ser atacada convenientemente?

Não, e isso é um problema grave. Por outro lado, nos últimos anos, a sinistralidade rodoviária fora da localidade também tem aumentado. O sistema de controlo e punição, aquilo que se designa por ‘enforcement’ está a funcionar muito mal. E falo menos das autoridades policiais do que aquilo que acontece depois de levantado o auto. A nossa legislação é hiper-complicada, e tem um brutal excesso de garantismo para o infrator rodoviário, o que dificulta muito a aplicação das sanções.

 

Tem sido denunciado que um condutor apanhado a conduzir com uma taxa crime (acima de 1,2 g/l de álcool no sangue) tem, muitas vezes, um castigo mais ‘leve’ que outro que acuse menos álcool mas cujo caso foi apreciado por um juiz, sem que haja uma sanção automática…

Esse ‘muitas vezes’ é quase um ‘normalmente tem’. É uma perversão do sistema. Embora as coisas tenham mudado um pouco com o alargamento das regras da carta por pontos a quem é apanhado com taxas crime, ou seja, o facto de ser possível a cassação da carta por esta via. Mas o valor pecuniário da coima e a inibição de conduzir diretamente relativa à infração em situação de crime continuam ser a ser mais brandas, o que é completamente estapafúrdio.

 

Os condutores não são punidos pelas infrações?

A dificuldade administrativa de tratar os processos com rapidez e eficiência tem sido enorme. Se consultarmos os relatórios RASI (Relatório Anual de Segurança Interna), ao longo dos anos verificamos que, em 2013 -2014, a percentagem de autos de infrações graves e muito graves inscritos no sistema face ao total dos autos levantados andava à volta dos 80% a 90%. Já em 2017, chega-se um ponto em que a percentagem de autos decididos face aos autos registados é de apenas 12% a 13%.

 

Esses números mostram uma entropia muito grande do sistema…

Sim, é brutal. Houve um grande esforço de tentar recuperar, o que fez com que houvesse condutores a receber quatro e cinco infrações de seguida, por atos cometidos no mesmo sítio. Normalmente, quando um condutor recebe a primeira infração, é capaz de admitir que tem de ter atenção quando passar no local onde a cometeu. Mas se não recebeu nada e durante um ano fez quatro ou cinco infrações no mesmo sítio onde costuma passar, o sentido pedagógico perde-se. E, por outro lado, é claro que, quem recebe tantas multas, vai recorrer a um advogado para tentar paralisar o processo.

 

Que efeitos tem esta falha no comportamento ao volante?

Todo o sistema tem funcionado mal. As pessoas acabam por ter alguma sensação de impunidade, mesmo que não seja consciente, que leva a que se repitam pequenas/grandes infrações, que aumentam o risco do acidente. Passa-se mais no vermelho, repetem-se excessos de velocidade ou álcool, etc.

 

O que poderia ser mudado?

Por exemplo, o controlo de velocidade é feito a partir de fotografias tiradas pela retaguarda dos veículos. Porquê? Em quase todos os países da Europa, as fotografias são tiradas de frente e é identificado o condutor. Aqui, ao fotografar-se pela retaguarda, permite-se que a pessoa ou a empresa que recebe o auto de infração um ano depois diga que não sabe quem está a conduzir ou indique, se calhar, a avó que já não conduz há dois ou três anos, mas que ia a 200 km/h numa autoestrada ou a 100 km/h a atravessar uma localidade. Tudo isto ajuda à desresponsabilização e a um sentimento de impunidade.

 

Faz duras críticas ao Plano Estratégico de Segurança Rodoviária 2020, criado pelo Governo para reduzir a sinistralidade. Considera irrealista atingir-se a meta de um máximo de 399 mortes na estrada em 2020?

Neste momento, infelizmente é. Mas se, à partida, houvesse um programa à séria não seria. Os objetivos de um plano de segurança rodoviária têm de ser bem definidos. Um objetivo não é ter a fiscalização a funcionar bem. Isso é uma ferramenta para o atingir. O objetivo é, por exemplo, reduzir a velocidade média, reduzir o número de pessoas que andam com álcool ou melhorar o comportamento dos peões e dos condutores face aos peões nos atravessamentos de estradas. E, depois, há uma série de políticas para conseguir esses objetivos, que incluem medidas nas áreas de educação, infraestruturas, comunicação, fiscalização e outras, que devem ser desenvolvidas em conjunto.

 

Acresce que o plano nem sequer está a ser cumprido…

As críticas que tenho feito, disse-as a todos os governos. Mas sempre acrescentei que se há um plano, as respetivas devem ser concretizadas. O problema é que nem isso tem acontecido.

 

Tem havido um grande desenvolvimento de tecnologias que permitem monitorizar o comportamento dos condutores, registando, inclusivamente,  as infrações rodoviárias. Este tipo de informação é importante no contexto da segurança rodoviária?

Claro que essas tecnologias podem ser úteis. Os dados da situação concreta são extremamente úteis e têm de ser a base das políticas, porque ficamos a saber o que realmente se passa. Mas se não servirem de base para a definição de políticas a implementar acabam por ter utilidade reduzida. Cada vez mais é fundamental ter uma visão global e pormenorizada das características da sinistralidade rodoviária. Onde, quando, como, quem, os comportamentos associados, são dados fundamentais.

 

Um condutor que sabe que o seu veículo está a ser monitorizado, pode alterar comportamentos de risco?

Não temos a certeza absoluta porque isso nunca foi estudado na prática. Há quem diga que, no início, estes sistemas produzem efeitos, mas, com o tempo, os condutores esquecem-se de que têm o sistema instalado e já não ligam nenhuma, voltando ao comportamento inicial. Mas este tipo de tecnologias servirão sempre como meio probatório [podem ser usados em litígios decorrentes de acidentes] e, se esses dados forem utilizados nesse contexto, o risco de o condutor voltar ao comportamento inicial reduz-se muito. Indiscutivelmente são ferramentas que podem ser muito úteis.

 

Produzido pela Webtexto para a Cartrack

 

A Cartrack possui um sistema que alerta para a possibilidade de ocorrência de acidentes.

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